Milk Bar: Artesanal & Ulraprocessado!

A nova temporada de Chef’s Table saiu há uma semana, e eu só conseguir ver o primeiro episódio, o da Christina Tosi. Não por falta de tempo, mas porque o vi 3 vezes em um misto de admiração e estranhamento pela trajetória da chef.

Christina é chef e fundadora do Milk Bar em Nova York, uma padaria do grupo Momofuku (do Dave Chang, que faz a série também ótima ‘Ugly Delicious’) genericforgreece.com. A casa é famosíssima por fazer receitas que, como a chef mesmo diz, seria o que ela iria querer comer se fosse uma adolescente. Entre neon rosa e confetes, o carro chef é o sorvete de “cereal milk” (leite de cereal) — isso mesmo, ela pega corn flakes para dar sabor daquela nostalgia de beber o final do leite com gostinho de cereal. Artesanal, mas com ingredientes ultraprocessados — quase um paradoxo pós moderno.

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Quem vê só essa parte da história pode pensar que seria apenas mais uma marca com sobremesas exageradas, que unem doces já prontos e que apelam para um só estímulo: açúcar, açúcar, açúcar. Porém, a trajetória de Christina exige que façamos uma reflexão mais além.

Ela estudou gastronomia e aprendeu as técnicas clássicas da confeitaria, trabalhou por mais de uma década na cozinha de grandes restaurantes em Nova York, conquistando passo a passo o respeito de chefs e críticos. Ela decidiu, porém, deixar sua carreira na confeitaria porque viu que não queria fazer sobremesas elaboradas cheias de rococó, e sim, trazer com suas criações as experiências de sua infância.

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Vinda de uma família em que as mulheres eram apaixonadas pela confeitaria, desde a infância Christina aprendeu com sua mãe, tias e avós a fazer cookies, brownies, bolos e tortas para alegrar a família e amigos. Eram esses gestos que ela quis recuperar com Milk Bar — a nostalgia dos afetos infantis.

Acontece que tendo nascido nos anos 80 nos EUA, quando começou a grande produção de alimentos industriais, as memórias de infância de Christina não estão só ligadas às receitas de vó do nosso imaginário, mas também às bolachas, cereais, biscoitos e todos os doces ultraprocessados que mapearam nossa própria infância.

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Um dia eu estava falando com uma doutorando de nutrição da USP, e ela me contou de sua pesquisa sobre nutrição e hábito alimentar da infância. Em uma das jornadas de campo ela perguntava para os pais quais eram os alimentos que eles associavam à infância deles. As respostas era do tipo “o bolo da minha avó”, “a torta da minha mãe” etc. Em seguida, ela perguntava “e se indagássemos a seus filhos a mesma pergunta, o que eles responderiam?”. Essa geração de pais que não cozinhava mais percebeu como as memórias afetivas de seus filhos estariam ligadas a produtos ultraprocessados. Christina viveu nesses dois mundos — as mulheres que cozinhavam tudo do zero, e os lançamentos da indústria alimentícia que encantavam também sua infância.

Entendam bem. Eu não acho que Corn Flakes, Oreo, ou outros doces prontos sejam um ingrediente ou um sabor. Para mim, a qualidade da comida está intrinsecamente ligada à qualidade dos ingredientes. E ainda não conheço pessoalmente alguém que tenha realmente amado as criações de Christina Tosi. Mas a existência e o sucesso do Milk Bar são muito interessantes.  Primeiramente porque questiona um dos conceitos mais difíceis que temos hoje na gastronomia — o que é artesanal? (falamos mais aqui). E segundo, porque é uma janela muito interessante para a nossa relação com a comida como um todo — esteja ela na cozinha de casa, na padaria ao caminho do trabalho ou em um restaurante estrelado. A cozinha é a experiência do presente que desperta memórias afetivas do passado — por isso mesmo que, apesar de eu ter uma noção muito clara do que procuro na BOA confeitaria, sei que gosto, ainda que sujeito à julgamentos, de fato, não se discute.

O sucesso do Milk Bar, talvez não esteja intrinsecamente ligado ao sabor, mas em ter captado uma contradição que nós todos (quase) vivemos, e despertar uma memória afetiva que combina o amor maternal da confeitaria com os apelos da indústria alimentícia ao paladar infantil — ainda que isso, assim escancarado, possa nos assustar, não podemos negar que também nos deleita.

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